Mãe, não tenho nada para fazer!” A observação, quase sempre acompanhada de uma expressão de aborrecimento e de súplica, pode até fazer-nos sentir irresponsáveis pelo “problema” e levar-nos a agir, inventando “qualquer coisa” para os entreter: uma sugestão de brincadeira, um filme de animação na TV, um jogo no tablet… Na verdade, a urgência em mantê-los ocupados não só é desnecessária como pode ser contraproducente.
As crianças precisam de tempo para não fazer nada, para se aborrecerem, porque é esse conforto com o tempo livre que lhes dá oportunidade de explorar o seu mundo interior e exterior, estimulando a criatividade e a imaginação, aprendendo a resolver problemas e desenvolvendo competências motivacionais. Se os mantemos demasiado ocupados com atividades estruturadas ou entretenimento tecnológico, dificilmente vão descobrir as suas paixões e interesses.
É preciso dar-lhes tempo, espaço e liberdade para que possam criar, inventar, descobrir-se. Tempo para observar os insetos na rua, para escrever uma história ou uma canção, para construir uma fortaleza no quintal, para organizarem um torneio de futebol com os amigos do bairro. Ou seja, explorar a tal sensação inicial de aborrecimento, que os motiva a encontrar algo de estimulante, pode ser exatamente o que a criança precisa de “fazer”. O verdadeiro problema é que este tempo livre está a tornar-se um luxo, com riscos para o seu desenvolvimento.
“Faz-lhes falta tempo para ‘não fazer nada’. De facto, quer seja pelos seus pesados horários escolares, com pouco tempo de atividade nos recreios, quer seja pelos horários de trabalho dos pais, com avós que (ainda) trabalham, as crianças acabam por ficar muitas horas no contexto escolar”, aponta a psicóloga Inês Marques, coordenadora da área infanto-juvenil da Oficina de Psicologia. Contexto esse “tantas vezes preocupado com metas de aprendizagem que se esquecem da importância das horas de recreio, para o desenvolvimento global da criança”, refere a especialista, sublinhando que “num recreio a criança cresce de forma completa e plena, nas suas dimensões cognitiva, emocional, social e física”. Mas hoje em dia, “mesmo que não seja dentro da escola, muitas crianças têm agendas tão ou mais preenchidas que os seus pais, com horários ‘fechados’ para as mais diversas atividades estruturadas, como a natação, o piano e o inglês, por exemplo. E onde fica a mais importante - o brincar? Onde fica a possibilidade de se deitarem no chão do quarto ou na relva do jardim e olharem para o céu a sonhar? Onde fica o tempo para se brincar livremente?”, questiona Inês Marques.
O tempo dos porquês
Está na hora, então, de repensar a agenda dos mais pequenos e não a preencher em demasia com atividades estruturadas, está na altura de deixar de os entreter com DVDs ou jogos de vídeo durante as viagens de carro ou as refeições em restaurantes, é tempo de lhes proporcionar oportunidade de escolherem e inventarem as suas próprias brincadeiras. Porque isso “permite-lhes crescer e desenvolverem-se”.
“A criança aprende a fazer escolhas (jogo ou leio um livro? Brinco sozinho ou procuro companhia?), usa a criatividade quando pouco ou nada de estruturado lhe é oferecido (como me vou entreter?), desenvolve o seu raciocínio, explora o mundo e o espaço, o seu ‘eu’ interior e a sua relação com os outros…” , explica a psicóloga acrescentando que é este tempo que gera os porquês. “ É o tempo das perguntas e das respostas, porque nas ditas atividades mais estruturadas não há tanto espaço para o questionar.” Por isso, o “não fazer nada” é fazer muito! “Um fazer muito que é gerado pela criança, consoante os seus gostos e interesses, consoante a sua disponibilidade e vontade do momento”.
Na realidade, acrescenta, Maria José Araújo, professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, nunca estamos a não fazer nada. “Pensar e descansar ou mesmo dormir é fazer alguma coisa. Alguma coisa essencial para o nosso bem-estar. Temos de ter tempo para pensar, descansar, contemplar… Isso é fundamental para qualquer ser humano. Precisamos de acabar com o stresse. Os adultos combatem o stresse com medicamentos e andam a fazer o mesmo com as crianças e isso é péssimo!”
Aliás, o direito ao lazer está contemplado no artigo 31º da Convenção dos Direitos das Crianças: a criança tem direito ao repouso, a tempos livres e participar em atividades culturais e artísticas. “Se não respeitarmos isto estamos a privá-las de um direito e nesse caso estaremos a cumprir o nosso dever de educadores? Penso que não.” O problema, refere a investigadora e autora do livro “Crianças Ocupadas”, é que as crianças andam a correr de um lado para o outro, sempre a fazer atividades que nem sequer escolheram e andam cansadas. Este cansaço é terrível”.
Se não brinca, asfixia
O problema, concorda a psicóloga Inês Marques, relaciona-se mais com “a quantidade de atividades em que as crianças se envolvem” e não tanto com as atividades em si, que na sua maioria até “desempenham importantes papéis no desenvolvimento de áreas específicas do crescer”. Por isso, é essencial perceber se a criança tem tempo para “brincar com os seus brinquedos, com as suas coisas”. Se ela se queixa que não tem então “talvez brincar de forma livre esteja a ser um luxo para ela… E brincar nunca poderá ser um luxo para uma criança”, sublinha. Com o risco de “criarmos crianças formatadas, contidas, que questionam menos, crianças menos curiosas, menos criativas, menos desenrascadas.”
“Brincar é uma necessidade, é como respirar. Se as privamos de respirar estamos a asfixiá-las. Também se morre asfixiado por não brincar. É preciso compreender isso”, alerta Maria José Araújo, explicando que esta asfixia “vê-se no comportamento irreverente: no choro compulsivo, no cansaço, nas birras, na impertinência, no mau humor, nas dificuldades de aprendizagem na escola e fora dela, nas respostas inadequadas…” E como se resolve esta situação? “Com bom senso, criando condições para que brinquem umas com as outras”, defende Maria José Araújo. Na escola, na rua, com os primos, no parque…O importante é que brinquem e muito, porque brincar e jogar é “uma atividade muito completa mas que precisa de treino”. Brincar implica “estar com os outros, saber conviver com eles, criar uma relação, experimentar, criar, inventar, explorar, imaginar…” E se não treinarem essas competências com o seu grupo de pares (umas com as outras) e com os adultos que estão com elas, depois não o saberão fazer”.
Por outro lado, lembra Inês Marques, “a preocupação em manter as crianças ocupadas”, muitas vezes faz com que os pais agendem programas ao fim de semana que parecem não ter fim. E pelo meio perde-se algo muito importante “e que as crianças realmente valorizam, que é tempo de partilha: a interação entre pais e filhos pode acabar por não ser tão nutrida quando o foco é ‘apenas fazer coisas”, sublinha a psicóloga para depois lembrar que “o que se ganha do ponto de vista emocional numa sessão de cócegas ou guerra de almofadas, numa tarde de histórias e fantoches, num bolo feito por todos, num jogo de tabuleiro, entre tantas outras possibilidades, é incomensurável… E tudo isto sem hora marcada na agenda”.
E quando não sabe o que fazer?
Geralmente isso significa que: estão tão habituados a passar o tempo em frente a um ecrã que não desenvolveram a capacidade de encontrar por si uma alternativa; o seu tempo livre está tão preenchido com atividades estruturadas que não estão acostumados a procurar brincadeiras para se entreter; precisam de mais atenção dos pais. Neste último caso, se o seu filho disser “Mãe, não tenho nada para fazer… Brincas comigo?” o melhor é parar o que está a fazer e focar-se exclusivamente nele nem que seja durante cinco minutos. Se usar bem este tempo, o mais provável é que o seu filho se sinta emocionalmente reabastecido e depressa vá “à sua vida”.
Deve ir à natação, à música e ao inglês?
É importante respeitar o interesse das crianças na hora de lhes preencher o tempo livre. “Se são obrigadas a fazer tarefas que não querem, então deixa de ser tempo livre para ser tempo não livre; ocupado forçadamente”, alerta Maria José Araújo, acrescentando que “se preenchem esse tempo livre com atividades que escolhem e gostam, então é tempo livre ocupado livremente e, em princípio tudo corre bem”. A questão fundamental, sublinha, é “distinguir entre ocupar livremente ou forçadamente um tempo que estava livre.” Porque se ocupamos forçosamente eles ficam “irritados e cansados”. E da experiência que tem, Maria José Araújo constata que “a maior parte das crianças não escolhe as atividades que faz. E se não a escolhe, “não a compreende ou não quer fazer, isso significa que não vai aproveitar”.
Fonte:
Teresa Martins
Pais & Filhos, número 304, maio 2016