É mais um dia dentro da barriga da mãe. No seu mundo escuro, ameno e aquático, o João leva o dedo à boca e chucha satisfeito. A mãe e o pai já o viram fazer isto numa das últimas ecografias da gravidez e surpreenderam-se com a imagem enternecedora do seu bebé a chuchar no dedo. O João fá-lo frequentemente, muitas mais vezes do que os pais imaginam.
Avancemos umas semanas. O João já não está in-utero. Agora do lado de fora, forte e saudável chora frequentemente. Chora e os pais preocupam-se porque o João só parece acalmar ao colo, com embalo, na mama, em estreito contacto com a mãe ou o pai.
Por esta altura, os pais já leram e ouviram falar muitas vezes da importância do autoconsolo, como forma de garantir que o João cresça para ser uma criança segura, confiante e autónoma. A imagem que criaram do João, a acalmar-se com a chupeta ou o seu bonequinho preferido, parece no entanto muito longínqua. E, agora, ao constatarem que o seu bebé precisa sempre de colo e embalo para se acalmar sentem que talvez estejam a fazer algo de “errado”
Esta é uma das questões mais importantes e frequentes que surgem nas minhas sessões com pais e bebés. “Ele não se consegue acalmar sozinho!”, repetem os pais e as mães referindo-se aos seus bebés, muitas vezes de poucos meses.
Para percebermos o que significa na verdade “acalmar-se sozinho” é preciso falarmos antes das possibilidades fisiológicas do bebé, ao nascimento e em cada etapa à medida que vai crescendo.
A verdade é que, nas primeiras semanas após o nascimento, o João está a experimentar pela primeira vez conceitos que terá de enfrentar para o resto da sua vida. O João nunca antes esteve separado, porque toda a sua experiência até aqui se fez em simbiose com o corpo da mãe.
Quando nascem, os mecanismos de autoconsolo dos bebés são ainda muito imaturos, quase incipientes. É, portanto, muito difícil para o João nas suas primeiras semanas de vida chegar sozinho a um estado de regulação em que consegue gerir situações de stresse e acalmar-se a si próprio. Simplesmente, tal como a maioria dos bebés nos primeiros tempos de vida, ele precisará quase sempre dos pais para conseguir fazê-lo.
O autoconsolo precisa de um estado ótimo de regulação neurológica e emocional, para poder emergir e nas primeiras semanas ou meses é normal que o bebé precise da ajuda do cuidador para transitar de um estado de agitação para um estado de relaxamento.
Mesmo que alguém lhes tenha dito o contrário, ao embalá-lo, ao confortá-lo, os pais do João estão a potenciar as suas ferramentas de autocontrolo. Uma delas, a mais presente logo desde o nascimento é a sucção. E é fácil reconhecê-lo: finalmente tranquilo e seguro, o João vai mamar melhor, levar mais facilmente o dedo à boca para se acalmar ou aceitar a chupeta, quando há uns minutos atrás, e, plena crise de choro, parecia simplesmente impossível que o fizesse.
O consolo gera (auto)consolo
A Matilde estava ao colo da mãe enquanto esta falava comigo. A mãe embalava-a e a bebé com pouco menos de quatro meses “cantava” enquanto adormecia, naquela ladainha repetitiva que os bebés fazem. A mãe da Matilde dizia-me precisamente que a sua bebé não conseguia acalmar-se sozinha para adormecer. Perguntei-lhe porquê. “Porque, quando a pouso, ela chora sem parar e só acalma quando lhe pego”, foi a resposta. O que a mãe da Matilde não tinha ainda reparado é que no colo os mecanismos de autocontrolo da Matilde estavam presentes, enquanto que sozinha a chorar na cama não. A “canção” repetitiva que a Matilde fazia enquanto adormecia ao colo da mãe era prova disso.
Nessa fase, o bonequinho que a mãe escolhera para lhe fazer companhia ainda não parecia muito interessante à Matilde. O colo era muito mais importante para que conseguisse acalmar-se e regular-se.
Quanto maior o nível de stresse do bebé, maior a necessidade de intervenção no consolo por parte do cuidador. Esse é um dos motivos por que não há benefício em deixar um bebé a chorar “para que aprenda a autoconsolar-se”.
Na realidade – e se os pais já experimentaram provavelmente saberão disto – e quanto mais o bebé chora, mais agitado fica a perspetiva de acalmar-se sozinho quando atinge esse estado vai parecer-lhes uma miragem muito longínqua. E não é porque os pais tenham feito algo de errado que isso acontece.
São já muitos os especialistas e investigadores que demonstraram a impossibilidade de um bebé que atinge níveis elevados de stresse, conseguir regressar sozinho a um estado de regulação. A novidade é ainda outra: sabe-se hoje também que quanto mais o bebé for consolidando a aprendizagem de conforto, melhor a exercerá sozinho mais tarde.
Cada vez mais a Ciência descobre como são importantes as experiências precoces na forma como ficamos preparados para enfrentar o stresse não só enquanto bebés, mas também muito mais tarde, na nossa vida adulta.
Ao contrário do que poderíamos pensar, o autoconsolo não é algo passível de ser treinado, mas sim algo que floresce e vai sendo adquirido através de uma aprendizagem de sensações de conforto e relaxamento que se seguem a um episódio de stresse.
Passinhos de bebé na direção de autonomia
À medida que fazem a sua caminhada após o nascimento, os bebés vão desenvolvendo ferramentas de consolo, conforto e securização. No princípio, a pele, o contacto, o corpo da mãe são o porto de abrigo para o consolo do bebé. Pelo menos no primeiro trimestre de vida, quase tudo que relembra o útero materno vai ajudar a confortar o bebé, na medida em que o relembra de algo que é familiar e seguro.
Porque os bebés são tão sensoriais, gosto de utilizar no meu trabalho, a par dos braços do cuidador, estratégias como sons massagens e algumas posições de conforto do bebé que o relembram o útero materno. É uma forma pacífica e orgânica de ajudar o bebé a fazer uma transição suave para o mundo externo, ajudando-o a adaptar-se e acalmar-se.
Ao colocarmos várias opções, à medida que cresce, o próprio bebé vai escolhendo as suas formas de conforto preferenciais. Gosta mais de uma determinada música para adormecer ou tem uma forma particular de se aninhar. Estes são mecanismos que gradualmente vão ajudar o bebé a utilizar os seus recursos de autoconsolo.
Ao longo do primeiro ano de vida, o bebé começa também a desenvolver a perceção de si próprio como alguém separado da mãe. O momento em que esta perceção acontece pode variar de bebé para bebé, embora seja frequente ocorrer entre os sete e os nove meses. Nesse processo, a chucha, ou o bonequinho, ou outro objeto que possa até não ser percebido pelos pais, torna-se agora um amigo inseparável. É o Objeto de Transição.
O bebé já fez um longo percurso desde o nascimento. Ainda assim, mesmo que agora os dispense mais vezes, os braços dos pais continuarão a ser-lhe necessárias muitas outras, nessa caminhada para a autonomia, feita de conforto, segurança e amor. Boa viagem!
O que é um Objeto de Transição?
Winnicott, pediatra e psicanalista, fala pela primeira vez do conceito de Objeto de Transição (OT) por volta de 1950. A adoção de um Objeto de Transição pode ocorrer a partir dos quatro meses de vida, podendo acontecer durante o primeiro ano, e faz parte de um saudável processo de autonomização.
O bebé elege o seu objeto de transição no início do processo de separação – individuação mãe-bebé, ou seja, quando o bebé começa a sentir a mãe como algo fora dele, que se relaciona com ele, e não uma mesma entidade em fusão. Quando a dependência absoluta se começa a transformar numa dependência relativa. Então, o bebé vai escolher um objeto que cumpra a função simbólica mãe quando esta não está: segurança, conforto e suporte emocional. O objeto é escolhido pelo bebé: a escolha é pessoal e pode ser um boneco, um paninho, um cobertor, uma chucha, uma música, um som, uma parte do corpo, um cheiro, entre muitas outras. Este objeto é escolhido pelo bebé e tem características específicas que só ele percebe. Mesmo podendo não fazer sentido para os pais são estas características específicas que fazem com que o bebé o escolha.
Tenha em atenção que…
É bastante comum que a criança não consiga dormir sem a presença do seu Objeto de Transição (OT).
Pode existir recurso a um segundo objeto, quando o de eleição não está ao alcance.
Quando a criança começa a usar a linguagem, é comum dar nome ao seu OT.
Em situações de potencial ansiedade/stresse, é comum que a criança peça para se fazer acompanhar do seu OT, como por exemplo na adaptação à escola ou numa dormida fora de casa.
Os pais não devem deitar fora ou esconder o OT da criança, porque julgam não fazer mais sentido o seu uso. Esta ação poderá significar uma quebra na confiança da criança, além de potenciar sofrimento emocional.
Quando não necessita mais do seu OT, a criança abandona-o. Este processo é geralmente pacífico e gradual, sem a necessidade de interferência de terceiros.
Ocorre por normal a partir dos cinco anos e até ao final da infância, sendo que é importante respeitar o timing emocional da criança para que isto aconteça. A criança poderá utilizá-lo em situações muito pontuais mesmo quando já não recorria há algum tempo ao seu OT.
Não havendo uma altura cronológica ideal ou específica para que o OT seja posto de lado, se o uso deste a partir da idade escolar for muito intenso de forma que interfira na vida social e académica da criança, poderá ser necessária a avaliação da situação.
Fonte:
Pais & Filhos, número 297, outubro 2015