Para Ana Lúcia, o momento permanece registado na memória “como se fosse ontem”. A família estava a passar o dia na praia e a, então pré-adolescente de 11 anos foi à geleira buscar um iogurte que, “por acaso até era o último”. Mas não chegou a comer uma única colherada. “A minha mãe tirou-mo das mãos e disse: ‘É para o teu irmão!’. Ele já tinha comido e eu disse-lhe, mas voltou a repetir, ‘É para ele e ponto final!’. E o meu pai, que estava a ver, nem abriu a boca. Foi aqui que tive a certeza de que o Filipe era o filho preferido dos meus pais”.
A cena passou-se há mais de 15 anos, e hoje, a agora farmacêutica consegue falar da situação sem mágoa. “O Filipe tem menos cinco anos do que eu e, enquanto crescíamos, senti que não me era dada a mesma atenção”. Chegada à idade adulta, Ana Lúcia confrontou os pais. “Não admitiram, disseram que nunca tinham feito diferença ente nós e até acredito que estavam a falar a sério, que de forma consciente nunca tinham feito de propósito. Mas o que é certo é que eu senti a diferença de tratamento em especial antes de ele chegar à adolescência”. Hoje, é próxima do irmão e a relação com os pais “é feita, não de igual para igual, mas entre uma filha crescida, pai e mãe, com altos e baixos. Mas que ainda tenho recordações chatas lá isso tenho”.
O tema do filho preferido é terreno fértil. Desde a Bíblia à literatura, ao teatro, à poesia, às artes plásticas, a ideia que pai ou mãe podem discriminar toda a restante prole em favor de um favorito – mais próximo, amado e protegido, em suma privilegiado – motivou inúmeros criadores. Mas até que ponto essa preferência é mito ou realidade?
“Pode ser considerada ambas as coisas – uma realidade e um mito”. Quem o afirma é a psicóloga Laura Alho que, em conjunto com a também psicóloga Fátima Almeida acaba de publicar o livro “O Filho Preferido” (edição Pactor), no qual é abordado um dos maiores tabus da vida familiar. É que poucos ou nenhuns adultos admitem, mas há mesmo crianças que são o “mais que tudo” lá de casa. Isto apesar da esmagadora maioria dos pais negarem o facto, “seja por vergonha, para não ferir suscetibilidades ou por considerarem que, efetivamente não têm preferência por nenhum”.
As preferências são, assim, reais. Já o mito radica na ideia de que essas preferências são causa direta ou podem justificar diferenças de qualidade nos laços emocionais e de afeto que ligam os adultos e as suas várias crianças. Em estruturas familiares não-patológicas, preferir não significa amar mais quem se prefere.
Choque de titãs
Maria Isabel, 45 anos e dois filhos, de 13 e dez anos, é uma das exceções à regra de recusar admitir preferências. “Sou mais próxima e dou-me melhor com o meu filho do que com a minha filha. E quanto mais ela entra na adolescência, mais complicado se está tornar. Já tenho dado por mim a desculpar coisas ao Vasco que, se calhar, não desculparia à Madalena. Não é algo de que me orgulhe, mas é a realidade”. E é por isso que a técnica superior de Administração Pública prefere não revelar mais sobre a sua identidade. Com o marido a trabalhar em Angola e a passar seis meses em África e um mês em Portugal, concede que não tem quem coloque “água na fervura”, como era habitual “até há algum tempo”. E reconhece: "A minha filha tem um feitio parecido comigo e, se calhar, por isso é que chocamos…”
Para Laura Alho, tanto a maior identificação com uma das crianças, como as reticências em admiti-lo são absolutamente normais. “Às vezes, os pais tentam ocultar essa preferência para não melindrar os filhos”, mas o fato é que “são muitas as condicionantes a ditarem a preferência por um filho”. A idade dos pais, a diferença de idades entre as crianças, se se tratam de filhos desejados ou não, fatores culturais e etnográficos, a complementaridade de personalidades entre os adultos e os mais novos e mesmo o género dos filhos podem ditar a forma como os adultos agem. “Por exemplo, os pais querem muito ter uma menina, mas só têm meninos, e quando a menina chega, ela passa a ser o centro da família”, refere a especialista.
Em situações extremas, o nascimento de uma criança deficiente, doente crónica ou com uma outra qualquer vulnerabilidade pode também levar a atitudes e cuidados por parte dos pais que se confundem com uma preferência. Em especial se o pai e/ou mãe tendem a “esquecer” as necessidades emocionais dos restantes filhos, por estarem centrados em atender ao filho “diferente”.
Para além disso, e como que a provar que esta questão é tudo menos estática, as duas autoras referem que “existem pais que afirmam que a preferência pode ser dividida, isto, é, que podem preferir um filho em relação a determinadas características e podem preferir outros que reúnem características diferentes”. É o que se passa, por exemplo, com um pai que é fanático por futebol e partilha essa paixão com um dos membros da prole, enquanto que os restantes fica à margem da “febre clubística”. Ou uma mãe que sente que é mais fácil convencer um dos filhos a partilhar as tarefas domésticas, enquanto que aos outros tem de pedir muitas vezes para fazerem a cama e arrumarem o quarto. Trata-se, em suma, de uma espécie de “preferência caso a caso”, que é, provavelmente, a realidade mais frequente no universo das famílias.
Por tudo isto, Fátima Almeida refere que a equação que leva a preferir um filho em relação aos outros é complexa e, por isso mesmo, difícil de analisar em abstrato. “O momento de vida, a própria personalidade de cada um dos pais, a ordem de nascimento e a etapa de desenvolvimento de cada um dos filhos” são dados que têm de ser levados em conta. Uma das situações mais comuns é o bebé estar numa “fase engraçada”, a aprender a andar, ou a falar, o que centra a atenção dos adultos nele, em detrimento dos irmãos. Pelo menos enquanto essa fase durar, ou não nascer um novo bebé.
“Gostas mais do pai ou da mãe?”
Se os filhos preferidos – ou, pelo menos, mais próximos de um ou de ambos os pais – são uma realidade, será que para as crianças também há um dos progenitores com quem sentem mais afinidade?
Para Fátima Almeida não há dúvidas: “Todos nós temos preferências em todas as relações que estabelecemos” e os laços com a mãe e pai não são diferentes. Mas, tal como acontece com a preferência parental, “a preferência dos filhos por um progenitor não significa necessariamente que estes gostem mais de um que do outro”. Esta predileção pode ser direcionada para quem “está mais presente, que demostra mais carinho, que brinca mais ou mesmo que é mais permissivo”. Ou seja, tem uma base conjuntural e não estrutural.
Por exemplo, na adolescência, altura em que os conflitos geracionais são mais visíveis, é normal que quanto maior for o atrito com um dos progenitores, “maior o afastamento dele e, provavelmente, maior a proximidade com o outro, o que, uma vez mais pode ser mal interpretado como preferência”, conclui Fátima Almeida.
Já Laura Alho acha curioso “perceber que a sociedade ‘aceita’ que os filhos possam preferir a mãe ou o pai, mas é tão resistente em assumir que também os pais podem preferir um filho a outros”. De facto, a pergunta: “Gostas mais do pai ou da mãe?” é feita inúmeras vezes às crianças, mas nunca tal coisa é perguntada aos adultos. Provavelmente porque as convenções sociais os impediriam de responder com honestidade.
As “Gatas Borralheiras” existem?
A história é conhecida de todos: enquanto as irmãs e a mãe vão ao baile do Príncipe Encantado, a Gata Borralheira – filha adotada e pouco desejada – fica fechada em casa, a fazer limpezas. No mundo real, será que os filhos não biológicos correm riscos acrescidos de se verem preteridos em relação aos irmãos?
“Não existe afeto baseado exclusivamente em condicionantes biológicas”, garante Mauro Paulino, psicólogo coautor do capítulo “Os Filhos do Coração”, inserido no livro “O Filho Preferido”. Ou seja, os desafios, os problemas e as alegrias que se colocam na vinculação e na parentalidade de um filho adotado “também acontecem depois do nascimento de um filho biológico”. Desde que “o processo adotivo seja sólido, devidamente acompanhado e avaliado” não há razão para as “Gatas Borralheiras”. E, já agora, nem para as “Cinderelas” com tratamento privilegiado “resultante de um qualquer sentimento de pena”. “Quando tudo corre pelo melhor, um filho adotado pode ser ou não o preferido” e, se isso acontecer, é um sinal sólido de que encontrou o seu lugar na família.
Preferidos, não mais amados
Enquanto crescia, Ana Lúcia reconhece ter tido “dúvidas” sobre o afeto que os pais lhe tinham. “O meu irmão era mais novo e parecia que era mais fácil cair nas ‘boas graças’ da minha mãe e do meu pai. Algumas vezes perguntei-me se gostavam tanto de mim como dele!" Com o distanciamento, hoje diz que “é possível que tenha sentido ciúmes, à mistura com imaturidade” e o resultado foi a sensação de que era preterida. Nesta questão das preferências, tanto Laura Alho como Fátima Almeida alertam para o grande perigo de as confundir com amor. Em especial por parte das crianças. “A preferência não deve diferenciar ao nível de afeto e de justiça. Se os pais não providenciarem as necessidades básicas aos filhos, onde os afetos estão incluídos, não estamos a falar de preferência, mas sim de negligência parental”, afirma a primeira, acrescentando: “Eu posso ter mais empatia por um dos filhos, mas isso não significa que eu ame mais esse filho em detrimento dos outros”.
Maria Isabel garante que, “mesmo nos dias em que estou pelos cabelos, nunca, em momento algum, me passou pela cabeça de que gosto mais do Vasco do que da Madalena. Quem diz que o amor se multiplica quando o segundo filho nasce tem toda a razão. O que se passa cá em casa é que o meu segundo filho é mais fácil do que a minha primeira filha. E quando chego cansada a casa prefiro ter de lidar com ele do que com ela!”, sorri.
Fátima Almeida afirma que é essencial transmitir a mensagem de que o amor não depende de um relacionamento mais ou menos fácil com os diferentes filhos e os diferentes níveis de empatia que os adultos partilham com eles. “Uma das melhores ferramentas que está ao serviço dos pais para exercerem a parentalidade de forma plena e bem-sucedida é o diálogo com os filhos “. E mais do que pretender transmitir valores, seja a justiça ou a igualdade de afetos, aos filhos, urge clarificar as duvidas e as falsas perceções que se instalam no pensamento das crianças em relação à preferência parental”.
Apesar de poder haver inclinações permanentes ou temporárias, pontuais ou gerais, “todos os filhos devem ser tratados da mesma forma justa, amados incondicionalmente” e teres a certeza de que o são. “O pai é diferente da mãe e os irmãos são diferentes entre si. Assim sendo, cada um tem a sua própria personalidade e identidade e na diferença se encontra o amor”, concluem as autoras.
Fonte:
Sofia Castelão
Pais & Filhos, número 298, novembro 2015
