Os clichés do filho único egoísta, desadaptado, com dificuldade em socializar e pouca resistência à frustração estão longe de corresponder à realidade. Os amigos, os familiares, os grupos desportivos, os clubes… são de vital importância para o presente e futuro dos filhos únicos e suas famílias. Mas uma coisa é irrefutável: cada vez mais casais optam por ter apenas um filho.
Uma investigação feita pelo Instituto Nacional de Estatística e pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, junto das famílias portuguesas (ano de 2013) apurou alguns dos motivos pelos quais os casais optam, cada vez mais, por ter apenas um filho, a saber: o investimento financeiro; para dar hipótese à mãe de ter uma carreira; porque a permanência conjugal não é suficiente para ter um segundo filho; a idade tardia em que a mulher engravida e as questões da fertilidade associadas aos agentes agressivos a que estamos expostos e que fazem com que existam muito mais casais inférteis.
O pediatra Artur Sousa revela que a maioria dos pais que lhe chegam à consulta “não têm um segundo filho devido às condicionantes económicas”, mas também reconhece que “bem orientados e apoiados, desde que tenham condições para tal, e mesmo com primeiros filhos difíceis, os pais continuam a apostar em ter o número de descendentes com que sonharam”.
Já o pediatra Mário Cordeiro acentua que “os pais portugueses sentem que não há condições de vária ordem – laboral, financeira, habitacional, de instituições escolares, de apoios à parentalidade – para terem mais filhos”.
Os dados do Instituto Nacional de Estatística de 2013 confirmam essa grande preocupação dos casais com o aspeto financeiro a ser apontado por 93 por cento das mulheres e 92 por cento dos homens.
Quanto à possibilidade de aumento da taxa de fecundidade (atualmente em 1,03 filhos), mais de metade das mulheres entre os 18 e os 49 anos (53,9 por cento) não quer ter um ou mais filhos e para os homens entre os 18 e 54 anos a vontade é semelhante (52,9 por cento).
Sobressaem neste inquérito do INE, todavia, dados curiosos: os homens desejam em média ter menos filhos do que as mulheres (1.76 para os homens e 1,80 para as mulheres) e os homens nascidos fora de Portugal têm em média um número de filhos mais elevado (2,58).
Os inquiridos manifestam também a convicção de que a natalidade deve ser incentivada com mais medidas por parte do Estado no sentido de aumentar o rendimento das famílias.
Ensine-o a partilhar
A psicóloga Rita Silveira Machado fala de um conjunto de circunstâncias sociais que levam à opção de ter apenas um filho, mas reconhece que esta decisão acaba por gerar outro tipo de preocupações. “Quando falamos com os pais, encontramos uma grande culpabilidade em relação ao facto de ter um só filho; cresceram a pensar que um filho deve ter irmãos, um aliado, e que é uma posição egoísta continuar com as suas vidas porque aquele filho não tem companhia”, diz, sublinhando que acaba por haver “uma tendência natural de compensar estes filhos”.
“A vida social de um filho único deve ser uma aposta forte por parte dos pais”, prossegue Rita Machado, alertando para a realidade de “um filho único exige mais cuidado com o equilíbrio dos limites”. “Os pais de uma criança que vive sozinha numa casa têm a responsabilidade de lhe proporcionarem determinada vida social e como a criança não divide nem amor, nem atenção, nem expectativas, nem esperanças, terem algum cuidado para que isto não seja uma sobrecarga para esta criança”, explica.
Assim, Rita Machado aconselha que um filho único pratique desportos coletivos, se integre em grupos ou campos de férias com os primos. “O filho único pode ser ensinado a partilhar, sabendo que em casa há uma exclusividade que com os outros não tem e esta é a primeira tarefa dos pais.”
Há, inclusive, que evitar que o espaço do casal seja invadido pelo filho único. “O espaço do casal deve ser preservado; é preciso sair e deixar o filho ao cuidado de outros porque senão formamos personalidades narcísicas e egoístas, que se tornam difíceis de socializar porque não aceitam a questão do ouvir e ser ouvido”, explica. Para diluir esse sentimento, a psicóloga aconselha a “promover as relações, redes com amigos, com o resto da família e com outras pessoas importantes na comunidade”.
Para a psicóloga Rita Silveira Machado, membro do Conselho de Administração da Fundação Brazelton/Gomes-Pedro, “o filho único é encarado como igual a todos os outros”. De acordo como o modelo da Fundação “olhamos para a parte positiva e deixamos a parte negativa dos clichés de que o filho único é egoísta, não partilha, tem um discurso desadaptado ao grupo de pares, não aceita a frustração porque está habituado a ser muito elogiado e a ser grande estrela nesta exclusividade com os pais”.
Já não são o que eram
Também o pediatra Mário Cordeiro considera os filhos únicos como “tradições que já não são o que eram” e lembra que “muitas crianças foram injustamente rotuladas de “filhos únicos” no sentido de mimado, estragado, exigente, narcísico e malcriado quando eram simpáticas e gentis, altruístas e bem-educadas”.
Trata-se de perceber aquilo que qualquer criança precisa para ser educada. Segundo Rita Silveira Machado, “necessita de uma relação amorosa coesa e forte com os pais pela qual puxamos e intervimos desde a consulta pré-natal e depois nos primeiros tempos de vida”.
“É importante a imposição de limites, a autoridade para a tolerância à frustração e isto é a educação de todos os miúdos, sejam filhos únicos ou não”, explica Rita Machado.
Mário Cordeiro transmite aos pais que o consultam que “se combaterem o egocentrismo e a omnipotência infantil, a criança terá maiores probabilidades de ser um adulto bem formado, o que reverterá a seu favor, bem como para toda a sociedade; serão certamente pessoas mais felizes”.
Vantagens para todos
“O que é bom para cada criança tem de ser visto no sentido da sua circunstância e família. Há famílias que não convivem, muito isoladas, em que as pessoas foram deslocadas para as grandes cidades e não há tempo nem condições económicas para fazer amizades”, diz Rita Machado, notando que “estas famílias têm vantagens em entrar em clubes, comunidades, grupos desportivos, no fundo, qualquer atividade que promova uma ligação entre os pais” pois isto “tem vantagens para as crianças e para os pais”.
Mário Cordeiro segue a mesma linha de pensamento, declarando que “a socialização da criança, a menor hiperproteção dos avós e restante família e o que se sabe sobre educação dá-nos saber e ‘armas’ para evitar que o único filho se torne ‘filho único’”. A propósito, lembra que “a atual escolarização precoce muito veio ajudar a desenvolver o que, para um filho único em casa (com poucos primos e vizinhos também), podia ser mais difícil adquirir: empatia, solidariedade, respeito, partilha e interação”.
A psicóloga Rita Machado frisa ainda que “ao contrário do que se possa pensar, há muitos modelos de investigação que apontam no sentido de os filhos únicos terem mais oportunidades, melhor desempenho escolar, socializarem bem, viajarem com mais facilidade, saírem à noite com mais dinheiro e, portanto, aceder facilmente aos convites”.
Outra mudança social acontece por influência das tecnologias. “Encontramos crianças que vencem essa dificuldade em se relacionar através das redes sociais, o que é positivo se for numa dose comedida e excessivo se for numa dose descontrolada”, alerta a psicóloga, que faz notar que “o desafio para os pais é perceber onde está o equilíbrio entre proteger e mandar”.
Em conclusão: um filho único exige cuidados especiais. Não há nenhuma receita milagrosa com resultados garantidos, mas também não há nenhum “karma” intransponível associado ao facto de se ser filho único.
As razões dos pais
Ana (56) e Domingos (58) têm uma única filha. “A decisão foi tomada por motivos financeiros. Tentei proporcionar à minha filha aquilo que não tivemos: a possibilidade de estudar”, recorda Domingos. “Depois emigrámos e era mais fácil a mobilidade e a habitação com apenas uma filha”, acentua. O casal refere que “prefere fazer viagens e ter tempos livres com a filha porque sem ela não faz tanto sentido”. Não consideram a filha egoísta, “pelo contrário, é amiga do seu amigo e gosta de socializar”.
Quanto a Bárbara (40), mãe de filha única, mas neste caso monoparental, decidiu ser mãe aos 34 anos. “A idade tardia na maternidade deve-se a uma tentativa de carreira, que acabou por não se concretizar e, aliás, a situação profissional atual é muito periclitante por isso, se calhar ainda bem que só tenho uma filha; ter uma única filha tem como principal motivo, a curta duração da convivência conjugal com o pai”, conclui Bárbara.
Todos os entrevistados consideram que as crianças não têm qualquer problema de caráter por serem filhas únicas. Contudo, Bárbara admite que lhe agradaria a ideia de um irmão para a filha “simplesmente para ter mais um apoio ao longo da vida, um melhor amigo”.
Testemunhos
O pequeno adulto
João, 13 anos, filho único, vive com a mãe e a avó. Considera-se “mimado sim”, mas gosta de partilhar. “Apesar de me chatear em estar constantemente a partilhar, sou escuteiro e, enquanto tal, aprendi a partilhar”. Começou por integrar este grupo a pedido da mãe. “Era mais novo e não gostava muito da ideia porque me custava fazer amigos novos. Não sabia como me integrar”.
Tem “os amigos necessários, nem muitos nem poucos. Sou muito ligado à minha mãe, mas não gosto de estar sempre agarradinho a ela, por vezes também me chateia um bocadinho”. Sente que a mãe e a avó o protegem e, por vezes, tem vontade de romper com essa proteção. No entanto, faz a ressalva: “A minha mãe dá-me liberdade para ir a casa dos meus colegas e eles também costumam vir a minha casa”.
Pensa muito no futuro, gosta de ver as notícias e está alerta. “A minha mãe ensinou-me que para tudo na vida temos de trabalhar. Conversa comigo e explica-me que tenho de me aplicar agora para dar continuidade a esse trabalho no futuro. A educação que os nossos pais nos dão é muito importante para o nosso pensamento.”
É um bom aluno, tem interesses múltiplos e está contente por em breve ir para a natação e aprender mandarim. Assume que corresponder às expectativas de alguém é um dos seus grandes problemas porque tem “medo de desiludir. Dou sempre o meu melhor e choro se não consigo porque as pessoas acharam que ia conseguir.”
Custa-lhe adormecer quando pensa no dia em que a mãe não estará mais com ele e tem medo que a restante família se separe. “A família pode desmembrar-se e tenho medo de acabar sozinho.”
O caso extremo
Miguel, dez anos, sofre de défice de atenção, algo que provavelmente passará quando adquirir um pouco mais de maturidade. Vive com o pai e com a mãe e corresponde ao conceito “puro e duro” do filho único. Não gostava de ter irmãos porque “prefere estar sozinho” e “não queria dividir a mãe com mais ninguém. É a minha melhor amiga e a minha companhia preferida”. Todavia, confessa que não pensa muito nas recomendações que mãe lhe dá no dia-a-dia nem gosta muito de a ajudar.
Não tem dificuldade em partilhar. “Tenho muitos amigos”, diz, “nem sei quantos”. Já teve várias atividades de tempos livres – karaté, futebol, natação –, desistiu de todos porque não gostava, mas não lhe ficaram amigos destas atividades. O seu passatempo preferido é ver os desenhos animados na televisão. Não gosta de matemática nem de ler e prefere expressão plástica. “Às vezes tenho boas notas”. A melhor coisa que lhe podia acontecer? “Ganhar o Euromilhões e ter uma moto quatro”. Por agora não pensa no futuro porque acha que “ainda é muito cedo”.
O exemplo positivo
João, hoje com 40 anos, filho único, perdeu o pai aos sete anos de idade, mas lembra-se que “chegou a pedir um irmão à mãe pelo Natal “ (risos). “Sou um exemplo positivo de filho único porque fui educado para socializar e ser humano com o meu próximo.”
O facto de ser filho único tornou-o “mais introspetivo” e trouxe-lhe a necessidade de um tempo para estar com ele próprio. No entanto, sempre “alimentou muito as relações com amigos, grupos desportivos, escuteiros, associações e, sobretudo, com a paróquia: a minha educação católica deu-me um certo humanismo e influenciou a minha maneira de viver.”
Tem também “uma família grande, com muitos primos”, com quem procura conviver e aposta “numa rede de amizades forte porque as amizades duram mais do que tudo”, acentua.
“Os meus pais sempre me ensinaram o valor da vida e a educação para olhar o próximo foi importante. Não sou o centro do universo.” E João é claramente um “íman” de amizades.
O eterno solitário
Vítor, 50 anos, filho único, sente que a sua personalidade foi moldada não “apenas” por ser filho único, mas pelo facto de ser filho único de pais separados a partir dos 11 anos. Nunca se reviu no cliché do filho mimado. “Nem me tornei num adulto egocêntrico ou egoísta porque tive uma educação bastante espartana, habituado a dar valor ao que se tem”.
No entanto, reconhece que sempre teve dificuldade em socializar. “Habituei-me a viver ‘sozinho’ muito novo, construindo os meus mundos, fazendo a minha vida, ao meu ritmo e ao meu modo. Isso fez de mim uma pessoa bastante solitária, que está bem consigo e pouco à vontade no meio dos outros. Por via da minha profissão, que me obrigou a contactar com muita gente, muitas vezes desconhecidos e a ter exposição pública – algo com que ainda hoje lido com dificuldade –, desenvolvi mecanismos e defesas que me permitem ‘socializar’, disfarçando a dificuldade.”
Sendo homem de convicções nunca procurou fazer parte de grupos desportivos e muito menos de associações para colmatar a falta de irmãos. Evita “a todo o custo grupos, festas cheias de gente e até jantares de família de outros”. Pensa no momento em que perderá a mãe, porque já perdeu o pai e sabe que vai “sentir uma profunda solidão”.
Gostava de ter tido um irmão. Não sabe como “teria corrido”, mas, confessa, “sei que poderíamos ser uma ajuda para repartir peso e responsabilidades do muito que aconteceu pelo caminho”.
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