Por vezes, quando Francisco, de seis anos, era contrariado com ordens como “desliga a televisão e vem para a mesa” (repetidas até à exaustão), desatava aos pontapés no sofá, cerrava os punhos e os dentes e enfurecia-se. O mesmo acontecia quando ia ao supermercado com a mãe e ela lhe negava um brinquedo. A raiva crescia dentro dele e explodia de forma desmedida. Uma ou outra vez, chegou a casa enfurecido depois de uma festa de aniversário porque queria um Lego igual ao que o amigo tinha recebido de presente. Apesar de, na maior parte do tempo, ser uma criança meiga, sociável e feliz, tinha uma dificuldade notória em lidar com as emoções negativas. Aprender a gerir a raiva e a frustração foi um processo demorado e nem sempre fácil, mas com a ajuda dos pais e da educadora, Francisco conseguiu e hoje sabe lidar com as contrariedades de uma forma mais moderada e contida.
Na verdade, a gestão emocional “não é fácil”, admite o pedopsiquiatra João Guerra. “É um processo contínuo, com avanços e recuos, com diversas variáveis, internas e externas, que o influenciam”. E que começa no berço: “O bebé não é um ser passivo, está equipado com um conjunto de mecanismos para estabelecer ligações com os seus cuidadores, que poderão ser mais ou menos atentos e contentores. Por outro lado, os bebés têm características individuais com uma base biológica ou genética, descritas como temperamento”, explica.
Essas características “podem ser agrupadas de uma forma sucinta em nível de atividade, impulsividade, sociabilidade e emocionalidade, que diz respeito à expressão de emoções. Um temperamento difícil, por exemplo, com uma maior irritabilidade, com maior dificuldade na autorregulação do ritmo do sono e da alimentação, é acompanhado de uma maior dificuldade em gerir as emoções.” E muitas vezes esta dificuldade “condiciona a relação com os cuidadores”. Este processo de autorregulação emocional começa, assim, a desenvolver-se “desde o nascimento e é essencial para a vida presente e futura”.
Saber gerir emoções – positivas e negativas – traduz-se numa maior capacidade da criança “se adaptar ao longo da vida, de se desenvolver a sua capacidade resiliência e, de um dia – quando adulta – também ser capaz de ajudar outras (suas) crianças nesse processo”, salienta João Guerra.
O desafio de ser modelo
Apesar de ser um processo complexo, não só para as crianças como também para os adultos, os pais podem (e devem) ajudar. “Tal como ensinamos os filhos a atar os atacadores e a comer sozinhos, também os ensinamos a identificar, regular e expressar emoções. É uma tarefa de todos os dias, essencial para a construção equilibrada e saudável da personalidade”, sublinha Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica e autora da coleção de livros infantis “Emoções”. E esta tarefa passa por ajudar a criança a “identificar e nomear emoções, expressar o que sente, identificar o que faz os outros sentir e ajudá-la a explorar formas de lidar com as emoções”.
O primeiro desafio dos pais é “antes de tudo desenvolverem a sua própria literacia emocional”. Só assim vão conseguir “ajudar a criança a contactar com as diversas emoções e dar-lhes significado, sempre num exercício de respeito por características individuais, níveis de desenvolvimento e formas de as viver”.
É preciso não esquecer que “as crianças aprendem muito por observação, pelo que a forma como o próprio adulto vivencia as emoções vai influenciar a gestão emocional da criança”, sublinha a psicóloga. João Guerra reforça: “Somos modelos! É mesmo importante que os pais compreendam as suas emoções, nas diferentes situações do dia-a-dia, na interação com os filhos, mas também, quando for o caso, na interação com o outro elemento do casal ou com a família alargada.” E ao radar da criança nada escapa, desde a “linguagem não-verbal, à tonalidade emocional de cada momento”.
Birras inevitáveis
Na infância, explica Rita Castanheira Alves, o nível de “imaturidade emocional, as características de cada fase de desenvolvimento, o contexto da criança, o acesso e contacto com novas experiências e sensações e as características do próprio funcionamento neurológico podem dificultar” a gestão emocional.
É preciso, portanto, adequar discursos e comportamentos e respeitar o grau de maturidade de cada criança. E lembrar que há birras que são inevitáveis (e necessárias) para o seu desenvolvimento.
“Partimos habitualmente do pressuposto, irrealista, de que é normal uma criança comportar-se bem, obedecer, o que não é de todo verdade”, nota João Guerra. De facto, acrescenta Rita Castanheira Alves, há “birras normativas que irão e deverão existir”, no entanto, “uma boa gestão emocional e a competência a nível emocional, permitirá evitar birras constantes e ciclos viciosos de má comunicação, castigos e desgaste de todos os elementos, tanto das crianças como dos adultos”. Ou seja, é importante que a criança consiga desde cedo “substituir a queixa através de gritos e birras pela expressão emocional do que estão a sentir, e os adultos substituírem os berros, castigos ou palmadas por diálogo, identificação e expressão emocional adequada, com resultados mais efetivos e mais duradouros”. O que nem sempre é fácil, admite o pedopsiquiatra: “Uma grande parte das famílias vive com uma enorme pressão, económica e social, e receio do futuro e isto coloca questões aos pais em termos da gestão das suas emoções, o que inevitavelmente se repercute nos seus filhos.”
Estou feliz
Quando se fala em gestão emocional não se fala apenas de emoções negativas, como a raiva ou medo. Fala-se também de emoções positivas. Embora sejam os sentimentos negativos e os comportamentos agressivos os que mais inquietam os pais (e os mais difíceis de gerir), é essencial que a criança saiba também identificar, expressar e lidar com as emoções positivas. Porque só assim a sua balança fica equilibrada e calibrada para a vida. Por isso, a gestão das emoções deve ser um trabalho diário e precoce, que passa por ajudar a criança a identificar e a nomear o que está a sentir, a valorizar o que sente e a ensiná-la a expressá-lo da melhor forma. Esconder, ignorar ou desvalorizar emoções – boas ou más – é prejudicial e pode resultar num bloqueio.
“Há que valorizar aquilo que está a ser sentido, contextualizado e desenvolvendo estratégias para lidar com isso”, sublinha Rita Castanheira Alves. Esta valorização promove um repertório emocional diversificado: “Não ter receio de falar de emoções negativas, nem de exprimir as positivas”. E é isso que se pretende, porque a literacia emocional é o que “permite colorir as nossas experiências e atribuir-lhes um significado”, salienta a psicóloga. E só com um bom repertório emocional é possível evitar transformar tristeza em zanga, culpa em agressividade ou frustração em raiva.
Quatro passos para controlar emoções negativas
- Pais como modelos: as crianças aprendem por observação, logo é importante que os pais resistam a fazer as suas próprias birras e evitem gritar. Ter um bom controlo das emoções é a melhor forma de ensinar a criança a regular as suas.
- Aceitar as emoções: mesmo quando são inconvenientes, sentir empatia é essencial para que a criança aceite mais facilmente o que sente e coopere com os pais. Colocar limites ao comportamento da criança não significa negar ou desvalorizar os seus sentimentos.
- Resistir aos castigos: palmadas, gritos e consequências são contraproducentes e apenas servem para a criança reprimir as suas emoções. É sempre preferível optar por uma orientação positiva e ajudá-la a processar e a gerir o que sente.
- Transmitir segurança: é importante que a criança se sinta segura com os pais para dizer tudo o que sente, mesmo quando estes lhe limitam o comportamento (“Podes dizer o que quiseres, mas não podes bater”).
Emoções em coleção
A psicóloga Rita Castanheira Alves acaba de lançar uma coleção de livros para ajudar os mais pequenos a lidar com as grandes emoções.
1. Como apresentaria a nova coleção “Emoções”?
É uma coleção de livros infantis ilustrados, para crianças a partir dos três anos em que, de forma lúdica, se pretende promover o desenvolvimento emocional desde a infância.
Cada livro, aborda uma emoção específica, através de uma pequena história na qual uma personagem, sempre criança, passa por uma situação/acontecimento específico que a faz sentir determinada emoção, encarada sempre como uma transformação, apelando à fantasia e imaginação: a Maria transforma-se em Maria do Medo, o Filipe Silva em Filipe Feliz e o Zé em Zé Zangado. A partir daí, são exploradas as sensações corporais associadas à emoção em questão, a identificação da emoção, pensamentos associados, a expressão da mesma e posterior regulação emocional, sempre recorrendo a uma linguagem simples, adequada à idade, com pormenores bem-dispostos, surpreendentes e fantasiados. Embora com recurso à fantasia e imaginação, os cenários criados e as personagens escolhidas são feitas de forma a promover a identificação da criança com a história e seu protagonista.
2. Por que razão começou por estas três emoções?
Tratando-se de livros que são destinados a crianças desde os três anos, o medo e a zanga são emoções muito presentes e frequentes nas fases de desenvolvimento destas idades. A felicidade surgiu pela vontade de alertar para a importância de fomentar, desenvolver e aprofundar emoções positivas, essenciais para um desenvolvimento saudável, saúde mental, maior resiliência, crianças mais satisfeitas, com maior segurança e otimismo e futuros adultos mais capazes, mais corajosos, satisfeitos e logo, com maiores níveis de felicidade e sucesso.
3. Para criar o Filipe, a Maria e o Zé, baseou-se nas crianças que tem acompanhado como psicóloga?
As personagens são construções com diversas fontes de inspiração: a minha infância, memória, fantasias, histórias reais e imaginadas e também do meu contacto privilegiado com as crianças que acompanho, suas características e problemáticos.
Fonte:
Teresa Martins - Pais & Filhos, número 300, janeiro 2016