Quando a barriga de Ana Stilwell se encheu de um sol chamado Marta, as suas filhas gémeas arranjaram duas nuvens para se protegerem daquele calor inesperado. Os ciúmes desse primeiro ano inspiraram-na a escrever o livro “A minha mãe tem o sol na barriga” (Livros Horizonte). Com base no seu texto, convidámos duas especialistas a comentar a sua história.
“A minha mãe tem o sol na barriga”
“Detesto estar grávida. Fico enjoadíssima sempre. ÀS 39 semanas tomava quatro Nausef por dia…” conta Ana Stilwell. Os enjoos foram, aliás, a razão para que tivesse contado logo às filhas a grande novidade. “Elas achavam que eu estava a morrer. Quando souberam, ficaram excitadíssimas. Uma delas perguntou logo, com muita graça e ingenuidade: ‘Posso ir contar ao pai?’”.
“Adoro deitar-me ao sol. E brincar com ele…”
“É muito giro viver uma gravidez com filhos pela interação que se cria. Até a mim me ajudou a relacionar-me mais com o bebé. Diziam olá, adeus, tocavam na barriga… e soubemos muito cedo que era uma menina, o que as ajudou ainda mais a criar uma ligação com a sua ‘Rapunzel’”, conta Ana.
Otília Monteiro Fernandes, Professora de Psicologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, confirma que a relação entre irmãos começa antes do bebé nascer. “Com as palavras adequadas, os pais têm longos dias (durante a gravidez) para encherem de boa luz os sonhos do irmão mais velho, reassegurando-o do lugar único que ocupa no coração deles. O que está interditado aos pais é mudarem bruscamente o seu ‘periscópio’ parental, e só olharem para o ‘sol’ que está a chegar”. Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica infanto-juvenil e de aconselhamento parental, deixa algumas ideias para a promoção de uma ligação precoce. “Sem antecipar excessivamente tudo o que vai acontecer, partilhar com a criança os estádios da gestação, promovendo o toque, a conversa com a ‘barriga’, o elogio e a importância que a criança terá como irmã mais velha; envolvê-la na escolha das roupas, objetos e preparação do quarto; responder às suas questões; legitimar dúvidas, receios, preocupações e estar perto; não tomar o assunto do novo irmão o único tema, dando atenção especial à criança, aos seus interesses e vida”.
"Descobri que afinal o sol era ótimo para me aquecer. Mas, pelo sim pelo não, tenho sempre uma nuvem no armário..."
“Mas às vezes fica tão quente… que preciso de uma nuvem em cima da minha cabeça”
À medida que a barriga ia crescendo e limitando-a fisicamente, Ana lembra-se de ter sentido um pouco “uma intrusão”. “Fiquei ainda mais agarrada a elas, numa espécie de reação de lealdade: ‘Não vou deixar que venha um novo ser destruir a nossa relação…’”. Essas limitações começaram a ter consequências. “A Carminho lida muito mal com o que não conhece e fez muitas birras no fim da gravidez. Senti, claramente, o sol a escaldar”.
Ainda em útero, o bebé pode já ser fonte de interrogações e ciúmes para o irmão mais velho? Rita Castanheira Alves acha que sim, “Todos nós ‘sofremos’ por antecipação, especialmente perante o desconhecido. É uma estratégia de sobrevivência humana, pelo que é natural que possa haver um conjunto de dúvidas e receios, mesmo antes do nascimento. A par disto, há mudanças na mãe, logo na gravidez. Físicas, mas também psicológicas, comportamentais e nas próprias rotinas, pelo que a criança poderá logo, na gestação, viver alguns ciúmes e alterações comportamentais como sinónimo de aceitação e integração da mudança”. Otília Monteiro Fernandes reforça: “O simples enunciar da vinda de um irmão pode ser visto como um riquíssimo momento de desenvolvimento, de aprendizagem do lugar que o filho mais velho ocupa na família, e de que os pais não são sua ‘propriedade’ exclusiva. Se o colo físico já não chegar para dois, que se cimente a certeza que no colo do coração dos pais cabem por igual os vários filhos”.
“Um dia o sol nasceu. Decidi levar a minha nuvem para todo o lado”
“A nuvem das minhas filhas não é só tristeza. É raiva também. E sobretudo em relação à mãe. Deixaram de adormecer sozinhas, acordam muitas vezes à noite a chamar por mim, pedem ajuda para se vestirem, não queriam ir à escola…Quantas vezes não fui ao Pinhão [Jardim Infantil], sozinha, a chorar e a pedir-lhes ajuda”, partilha Ana.
São os famosos ciúmes. Naturais e até saudáveis. Otília Monteiro Fernandes explica: “Quando o bebé nasce, começa verdadeiramente a relação entre irmãos. Se a mãe se ausentou dois ou três dias que sejam para ter o bebé, pode acontecer que seja o mais longo período de tempo que o filho mais velho esteja sem a mãe, o que não facilita nada os primeiros sentimentos relativamente ao irmão. Quando a mãe volta com o bebé nos braços, ‘sobrededicada’ ao recém-nascido, são naturais os ciúmes do mais velho. O ciúme é um sentimento que surge numa relação de amor: de um amor que possuía e de que se julga roubado, neste caso pelo irmão, que aparece como o grande responsável por este despossessão do amor parental, e com quem tem de aprender a partilhar os pais”. Rita Castanheira Alves complementa: “As alterações comportamentais do irmão mais velho estão relacionadas com a sua idade, com a sua fase de desenvolvimento, características individuais, acontecimentos de vida, vivências específicas à gravidez. Entre os três e os seis anos, poderão esperar-se mais dificuldades de adaptação à realidade de um novo irmão. Poderá observar-se maior instabilidade, se a criança tiver vários desafios em simultâneo (por exemplo, entrada para jardim-de-infância e nascimento do irmão) ou estiver numa fase de angústia de separação da mãe ou de maior oposição e desafio”.
“Um dia começou a chover torrencialmente. Com tanta chuva a nuvem ficou mais leve”
“As crianças sentem as coisas e é muito melhor ajudá-las a pôr etiquetas no que estão a sentir do que fingir que não se passa nada”, considera Ana, pela sua experiência. E conclui: “A alegria precisa da tristeza, o sol das nuvens… tudo faz parte”. Rita Castanheira Alves valida: “Todas as situações são excelentes oportunidades para o desenvolvimento emocional dos mais novos. E deverão ser os pais a fazer o papel de adulto: tranquilo, sereno, consciente de que é normal que algumas alterações comportamentais e que a criança possa manifestar alguns ciúmes e chamadas de atenção. No entanto, o nascimento de um irmão é uma oportunidade enorme de, a par com o ciúme, desenvolver a união, partilha, sentido de família, construção de cumplicidade única entre irmãos, o que, bem trabalhado é uma preciosidade para o resto da vida. Quanto aos ciúmes, podem ser até legitimados e aceites pelo adulto no sentido da criança poder expressar-se emocionalmente, não tendo receio de ferir os pais. Não se deve criticar excessivamente e nunca transmitir à criança que não deve sentir ou que é errado. Pelo contrário, é pela partilha que o ciúme pode ser trabalhado, ‘desconstruído’ e a criança aprender a lidar com ele de forma positiva. De forma a que o ciúme não se transforme num ativador de comportamentos negativos e dirigidos ao irmão injustamente, mas seja uma emoção compreendida e devidamente expressada”.
Otília Monteiro Fernandes acrescenta: “É bom experienciar todos esses afetos negativos dentro da família, onde podem ser facilmente compreendidos e atenuados, e bem arrumadinhos, de forma a serem mais um alicerce das nossas relações. E depois, pela vida fora, noutras relações, podem livremente florescer e ser manejados, sem maior estranheza, porque já o sabemos sentir e entender. Há sempre muitos outonos e invernos na nossa vida, e também muitos verões e primaveras. Mas nuns e outros, à chuva ou ao sol, o que interessa é sentirmos que estamos acompanhados. Que no nosso interior saibamos que temos quem goste de nós”.
Valorizar o mais velho
Rita Castanheira Alves, no seu livro “A psicóloga dos Miúdos - Guia para todos os pais”, dedica um capítulo ao nascimento de um novo irmão.
Aqui ficam cinco dicas para usar com o filho mais velho.
- Inclua-o na decoração do quarto, nas compras para o bebé e no crescimento da barriga. Pode facilitar o seu sentimento de pertença, tornando a vinda do irmão como um plano conjunto de toda a família;
- Reserve um tempo especial e único para o seu filho mais velho e combine com ele quando poderão fazê-lo apenas os dois. Dedique-se a ouvi-lo e a conversar sobre assuntos que sejam só dele;
- Valorize-o pela idade que tem, partilhando com ele tarefas que seja capaz de assegurar, relacionadas com as rotinas do bebé: encher o biberão, pedir-lhe uma fralda, ajudar no banho, escolher a roupa. Elogie-o por ser capaz e por ser uma ajuda precisa para si;
- Crie momentos de conversa para promover a partilha de sentimentos pelo seu filho, pondo-se no lugar dele: “Imagino que às vezes seja difícil agora não termos tanto tempo juntos” ou “Sei que às vezes te apetecia que estivéssemos sozinhos”. Com este tipo de frases, o seu filho vai sentir-se mais compreendido e acompanhado;
- Quando falo com o bebé, diga frequentemente: “Que bom teres um irmão mais crescido que nos ajuda tanto e te pode ensinar tantas coisas!”
Fonte:
Ana Sofia Rodrigues
Pais & Filhos, número 305, junho 2016