É incrível o poder que o choro de um bebé pode ter sobre nós. É um tortura ouvi-lo a chorar sem parar, sem o conseguirmos acalmar. Quando voltei a trabalhar e ia almoçar fora, ouvia um bebé a chorar e o meu coração parava. Era horrível e quase que me sentia obrigada a ir lá e tentar acalmá-lo. É de dar em loucos!”.
Ana Lúcia Ferro é mãe de um bebé de alta demanda, tradução pouco conhecida para os chamados high need babies, designação criada pelo pediatra William Sears.
Constança Cordeiro Ferreira, terapeuta de bebés, há vários anos começou o seu percurso exatamente a tentar ajudar as famílias destes bebés, que choravam inconsolavelmente. No seu livro “Os Bebés também Querem Dormir”, reuniu as características comuns que foi identificando: “Choro muito intenso que começa subitamente e se prolonga; choro que escala muito rapidamente mesmo quando é atendido; dificuldade em acalmar, mesmo com todas as tentativas; precisam de estar constantemente ao colo, não aceitando ser pousados; muito sensíveis a estímulos; dificuldades em adormecer e em regular a transição entre ciclos de sono; dificuldades em se alimentarem”. Resultado: um bebé e uma família em sofrimento.
Consulta inovadora
Foi a pensar nestas famílias, que há dez anos foi criada a consulta de Bebés Irritáveis na Unidade de Primeira Infância do Hospital D. Estefânia, em Lisboa. “Queríamos sensibilizar as pessoas para que podem pedir ajuda para aqueles bebés que choram intensamente e que todos dizem ‘é mesmo assim’, ‘têm que aguentar’, ‘isso depois passa’. O ser irritável, o choro intenso e a dificuldade em acalmar podem corresponder a um sofrimento do bebé, por isso abrimos a consulta para chamar a atenção para o tema”, recorda o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, responsável por esta Consulta.
O nome “Bebés Irritáveis” demorou algum tempo a escolher: “Queríamos um nome que levantasse o estigma de que os serviços de saúde mental sofrem sempre e, assim, melhorar a acessibilidade ao serviço”. Certo é que, desde então, perderam a conta a tantos bebés que já ajudaram e a tantas famílias que conseguiram reequilibrar.
Mas o que é, afinal, um bebé irritável? “É aquele que os pais acham que é irritável. É um bebé cujo choro os pais acham que já é intolerável e com o qual têm dificuldade em lidar”, explica. Constança Cordeiro Ferreira reforça: “O bebé humano é o único que tem a capacidade do choro inconsolável quando a causa já foi atendida. E o choro inconsolável é um choro que resiste às tentativas mais óbvias e instintivas de acalmar um bebé”. Só um pai e uma mãe que já tenham tido um bebé que chorou inconsolavelmente muitas horas e muitos dias seguidos consegue perceber as palavras de mães como a Ana Lúcia: “Ao fim do dia não tinha disposição para falar, para rir, para nada… Só me apetecia enfiar na cama e descansar ou chorar…” Nestas situações, o pedido de ajuda é essencial.
“Quando os pais, independentemente de tudo o resto, não descansam de um dia para o outro, andam mais irritados ou chorosos, sentem-se em desespero e colocam-se em causa, não se alimentam de forma adequada e até se descuidam da sua higiene, entre outras alterações possíveis, devem ver estas alterações como sinais de alerta”, destaca a psicóloga clínica Cláudia Pires de Lima. Ana Lúcia aconselha, por experiência própria, o mesmo: “Peçam ajuda! Não conseguem lidar com isso sozinhas. Não são supermulheres e é humanamente impossível uma pessoa ouvir um bebé constantemente a chorar, sete dias por semana, e conseguir manter a sua sanidade”.
Olha para mim!
Na Consulta de Bebés Irritáveis, há um “trabalho de detetive”, como explica Pedro Caldeira da Silva. “Observamos o bebé, a interação dos pais com o bebé, vão-se procurando identificar dificuldades ou problemas. Os bebés não falam, mas falam com o corpo, com o movimento, com o olhar, com a voz. Eles vão dando muitos sinais. E são todos muito diferentes uns dos outros. No fundo, o que fazemos é ajudar as pessoas a olhar para os bebés e a conhecê-los”. Os técnicos vão avaliando e pondo hipóteses. “Uma das hipóteses mais comuns é a depressão materna, mas também dificuldades regulatórias dos bebés (dificuldades de reatividade sensorial), condições de guarda (os que têm alternância dos prestadores de cuidados, mais frequentemente são bebés irritáveis), bebés que estão longas horas em situação de grupo… Pode ser muita coisa…”.
Constança Cordeiro Ferreira acrescenta: “Há bebés que parece que precisam de uma experiência quase ‘semi-uterina’ enquanto põem os pezinhos cá fora no mundo. Temos que estar muito disponíveis para conhecer o bebé. E, às vezes, o meu trabalho é só blindar os ouvidos das mães para elas deixarem de ouvir as várias vozes exteriores e passarem a ouvir a sua voz de dentro. Passamos muito tempo na net e a ler livros à procura de soluções, desviando o olhar do essencial, que é o nosso bebé”.
A primeira prioridade que Constança estabelece com os pais é reduzir os níveis de stresse coletivos, “porque o contágio hormonal nos primeiros meses é gritante”. Como? Encontrando formas eficazes de acalmar o bebé nos episódios de choro. “As estratégias passam quase sempre pela utilização da memória uterina: movimento permanente, contacto permanente, ruído permanente”.
Embalo, colo, toque são elementos essenciais. “O contacto pele com pele ajuda sempre”. Só após passada esta fase SOS se poderão conhecer e ver emergir os padrões do bebé, quer de sono, quer de alimentação, mas também de comunicação. “Depois do SOS surgem pontes de esperança: um sorriso, o perceber qual é a altura certa para embalar, para conversa, a mãe sentir que o bebé a segue… É quando os pais começam a usufruir. Só aí se vê o padrão do bebé. Há bebés que adormecem sozinhos na sua cama, mas há outros que não aceitam ser pousados e sair do colo. Temos que confiar mais nos bebés pois eles normalmente pede-nos aquilo que precisam. São muito sábios”.
Um percurso “duro”
Constança deixa mais um alerta: “A exigência e os cuidados que um bebé precisa apanha-nos completamente de surpresa. A ideia cultural que se criou dos bebés serem rotinados, treinados, comerem a horas certas, que se pousam e ficam e adormecem sozinhos… é absurda! E se isto não acontece, os pais pensam logo que é porque estão a fazer alguma coisa mal e têm o bebé mais difícil do mundo!”
E quanto a estes bebés mais difíceis, Constança costuma dizer aos pais: “São bebés que nos levam pela mão a sítios onde sozinhos não iríamos. São bebés que nos colocam questões profundas sobre nós próprios que um bebé mais tranquilo não coloca. É um percurso duro e é por isso que os pais têm de se rodear de apoio”. E termina com uma imagem de esperança: “É como se mergulhássemos numa água muito escura, mas quando vimos à superfície há sol e somos outros. Somos mais maduros, mais confiantes em nós próprios, exercitámos o nosso músculo do instinto e foram estes bebés que nos obrigaram a fazer esse caminho, com o seu choro, com os seus pedidos, com a sua exigência”.
Bebés silenciosos
No outro oposto, foi criada também na Unidade de Primeira Infância do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, a Consulta de Bebés Silenciosos. Pretende chamar a atenção para “bebés que não são ruidosos, que não dão trabalho, que são muito bons de aturar, mas que dão outros sinais negativos que se calhar têm que ser vistos, pois podem não estar bem. São bebés que não choram ou choram pouco, não são interativos, não têm reciprocidade, não reagem ao nome, não olham, não se animam, não puxam pelo adulto…”, descreve o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva. “Podem estar muito tristes e desanimados ou podem ser os primeiros sinais de uma perturbação do espetro do autismo”, reforça e conclui: “O nosso objetivo é identificar estas perturbações muito cedo porque ganhamos muito tempo. A intervenção precoce faz muito diferença, tem mesmo muito mais sucesso”.
Fonte:
Ana Sofia Rodrigues
Pais & Filhos, número 301, fevereiro 2016