Sentado no sofá, a tentar completar as palavras cruzadas do jornal, o avô contou as letras que lhe faltavam para preencher a linha: “Ora, um, dois, três…”.  Às voltas com os legos e as plasticinas, aparentemente alheada de tudo o resto, a Raquel, a três meses de completar dois anos, continuou: “Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Já está!”. E abriu um sorriso escancarado, como que a celebrar a façanha.

José António, 65 anos e antigo enfermeiro, não queria acreditar. “Primeiro pensei que tinha ouvido mal. Depois pensei que tinha sido uma vez sem exemplo. Mas, para tirar as teimas, chamei a minha mulher e voltei a dizer “um, dois, três…”. E, mais uma vez, a neta chegou à dezena. “Telefonei à minha filha e reclamei. ‘Então a miúda já conta até dez e não me dizias nada!?’ Ela ainda ficou mais espantada do que nós! Está bem que, desde que entrou para a escolinha que temos vindo a notar uma grande evolução, mas nunca esperámos isto tão cedo”, confessa, sem disfarçar o orgulho.

Bebés Inteligentes: Genética ou Ambiente?

Desde que o bebé nasce, todas as conquistas são celebradas. Do primeiro olhar com intenção ao primeiro sorriso, da primeira palavra aos primeiros passos, todos os patamares de desenvolvimento motivam aplausos, troca de palavras orgulhosas e até a muito humana tentação de achar que as crianças lá de casa são dotadas de aptidões acima da média. Mas até que ponto as capacidades têm uma base inata e até que ponto são resultado das chamadas experiências ambientais e de socialização?

“É impossível responder a essa pergunta. Apetece dizer que se trata de uma situação como a do ovo e a da galinha. O que surge primeiro? Não se sabe. O que sabemos é que o potencial cognitivo sem estímulos não vai longe, mas que é necessário uma base cognitiva para se obterem resultados da estimulação. Se tivesse mesmo de dar uma resposta, diria que são dois lados, inseparáveis, da mesma moeda”. As palavras são do neuropediatra Luís Mário Borges, com uma carreira dedicada à intervenção em casos de perturbações cognitivas e comportamentais e também ao estudo do processo de aquisição precoce de capacidades.

O processo de receção de estímulos sensoriais começa mesmo antes do parto. Dentro da barriga, o bebé consegue ouvir, reagir a mudanças na luminosidade ou no tom de voz, tatear e, dizem estudos recentes, até percecionar o estado de espírito não só da mãe como também das pessoas que a rodeiam. Ou seja, nesse momento o recém-nascido está longe de ser uma tela em branco, à espera das primeiras experiências. No entanto, é no intervalo entre o nascimento e os dois anos que se dá o maior salto de desenvolvimento físico e cognitivo em toda a sua vida.

Bebés Inteligentes: Genética ou Ambiente?

Equações de terceiro grau

Luís Mário Borges é avesso a apresentar uma definição estanque e definitiva de inteligência, neste caso a dos bebés até aos 24 meses. Em primeiro lugar porque “existe mais do que uma” e em segundo porque o que, de forma corrente, passa por inteligência é o resultado de uma equação com números variantes, que é diferente para cada um de nós.

“Existe, certamente, uma base biológica ou genética, que determina as estruturas neurológicas e celebrais. Qualquer profissional de saúde sabe disso e usa metodologias para as avaliar, especialmente nos casos de crianças com sinais de perturbações ou com um desenvolvimento atípico”, recorda o especialista. Quando esse não é o caso, “diria que estamos perante um bebé de desenvolvimento típico quando ele adquire, de forma crescente, ferramentas para interagir com o mundo, aprender com o que lhe acontece, replicar atitudes na procura de obter um determinado resultado e mostrar sinais de criatividade”.

Bebés Inteligentes: Genética ou Ambiente?

E será a inteligência “educável”? “Dito assim, parece-me muito perigoso”, diz, a sorrir, Luís Mário Borges. “Se há coisa que procuro combater e travar é a ânsia competitiva de algumas famílias. As capacidades dos bebés estimulam-se através da vida quotidiana, sem que seja necessário qualquer ‘plano’ específico. É isso a que chamamos de estímulos ambientais, mas mais que ambientais, eu diria estímulos naturais”. Dito de outra maneira, a vida de todos os dias, desde que seja rica em afeto, em palavras, em experiências e em diversidade é o terreno fértil necessário para que o bebé floresça.

É precisamente isso que a educadora de infância Ana Margarida Cunha observa, todos os dias, em primeira mão. “Trabalho nesta área há mais de 15 anos e continuo a achar impressionante a forma como os bebés se desenvolvem desde que aqui chegam e até passarem para o grupo dos dois anos. É a noite e o dia!”. Na sala de que é responsável convivem oito crianças, dos seis meses até completarem os dois anos. “São autênticas ‘esponjas’ a aprenderem tudo o que fazemos e o engraçado é que os mais novos também são ‘esponjinhas’ do que veem os mais crescidos fazerem. Para o bem e para os pequenos disparates”, conclui. Curiosamente, refere, “no diálogo que temos com os pais, chegamos à conclusão de que há sempre coisas novas para falar. Ou é uma ‘gracinha’ que eles fazem aqui e que surpreende em casa, ou algo que acontece no fim-de-semana e, na segunda-feira, até parece que ‘deram um pulo’ e estão mais crescidos!”

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Esquecimento essencial

Numa sala da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa encontra-se um ecrã onde vão passando imagens e sons simples, destinados a captar a atenção de bebés. Estamos no “Baby Lab Lisboa”, uma instituição criada em 2010 no âmbito do departamento de Linguística que tem por objetivo estudar o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças até aos dois anos, neste caso aplicadas ao processo de aquisição da linguagem. Sónia Frota, linguista e coordenadora do “Baby Lab” não hesita em dizer que, no campo da inteligência, a linguagem é, provavelmente, “uma das ferramentas em que se consegue observar melhor a evolução dos bebés”. Primeiro, de uma forma “apenas recetiva” e, depois, de “uma forma crescentemente expressiva”. A equipa multidisciplinar do “Baby Lab” tem vindo a estudar não só crianças de desenvolvimento considerado típico, como também as que apresentam riscos acrescidos de perturbações de desenvolvimento e ainda as que já foram diagnosticadas.

Bebés Inteligentes: Genética ou Ambiente?

O trabalho já realizado permite não só perceber tudo o que está à volta da aquisição da linguagem de uma forma regular como também dá “ferramentas para deteção precoce de problemas, o que, como se sabe, é essencial para o sucesso das terapias de intervenção”. Estes investigadores não conhecem a Raquel, mas o facto de a bebé, antes dos dois anos, saber dizer os números até ao algarismo dez não os surpreenderia. “Numa primeira fase da aquisição da linguagem, as crianças têm capacidade para captar muita informação, mesmo que não a consigam aplicar ou replicar no contexto adequado. Sabemos que os bebés distinguem idiomas, sotaques e entoações diferentes e até sabem se estão a ouvir palavras reais ou apenas ‘linguajar’”, revela Sónia Frota. O que importante é que os bebés tenham ferramentas para, ao longo do tempo, irem esquecendo coisas. “É impossível reter tudo e nem sequer é desejável que isso aconteça. É fundamental que a criança tenha uma capacidade seletiva que lhe permita reter aquilo que é necessárias nas várias etapas, abandonando o que já não lhe é útil e que, se permanecer, a impede de avançar”.

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Os três tipos de inteligência

Desde o final dos anos 30 do século passado, o Departamento de Desenvolvimento Infantil e Familiar da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, tem vindo a realizar estudos de larga escala sobre a evolução das estruturas intelectuais na infância. Recentemente, a instituição lançou um programa denominado “Better Brains for Babies”, no qual identifica três “janelas de oportunidade” em que os diversos estímulos são melhor recebidos e interiorizados. Mais do que uma só inteligência, os cientistas falam em três tipos de inteligência que se manifestam em diferentes etapas cronológicas.

Inteligência Emocional (do nascimento aos 18 meses)

Este tipo de inteligência envolve a compreensão da existência dos outros e da necessidade de os levar em linha de conta. Manifesta-se em emoções como empatia, felicidade, esperança ou tristeza e, de acordo com os investigadores norte-americanos embora se continue a desenvolver até à adolescência, é essencialmente definida pelas experiências e estímulos emocionais que a criança recebe até ao ano e meio.

Inteligência Oral (do nascimento aos dez anos)

Os bebés nascem com a capacidade de aprender qualquer idioma. Quando mais forem expostos à comunicação oral, mais depressa e mais solidamente adquirem esses conhecimentos. Para além disso, na primeira década, as crianças interiorizam as regras gramaticais, sintáticas e de construção de frases de um modo automático, ao contrário dos adolescentes e adultos expostos a uma nova língua.

Inteligência lógica (dos 12 meses aos 5 anos)

As capacidades de resolução de problemas matemáticos e lógicos está diretamente relacionada com os sentidos de visão, audição e tato. Curiosamente, os investigadores da Universidade da Georgia chegaram à conclusão que as capacidades musicais podem ser desenvolvidas em paralelo, através de estímulos sensoriais idênticos, que se centrem no sentido de espaço físico e, posteriormente, raciocínio que vá do físico ao não-físico, ou seja, do abstrato.

Bebés Inteligentes: Genética ou Ambiente?

Falar, cantar, ler, brincar e dar colo

Os cuidados principais desempenham um papel insubstituível. A boa notícia é que estimular o bebé é um prazer. “Interagir com os outros é a melhor maneira de aumentar as ligações cerebrais, chamados sinapses, que estão relacionadas com o desenvolvimento cognitivo”, refere Luís Mário Borges. Por isso, é importante:

Falar = Em todas as ocasiões possíveis e desde que o bebé nasce. Por exemplo, ao colocá-lo na cadeirinha do carro “por que não dizer onde se vai, com que objetivo, quem se vai encontrar e tudo o mais que faça sentido? Mesmo que pareça o contrário, a criança regista e beneficia dessa informação”.

Cantar = Canções de embalar. Rimas. Trava-línguas. O último êxito de kizomba ou um clássico do rock. Não importa o quê, o que interessa é que a criança receba impressões musicais desde cedo, em especial na versão cantada. “As rimas e os diferentes ritmos ajudam-na, não só no aspeto da linguagem como nas capacidades de elaboração abstrata, sem suporte físico”, confirma o neuropediatra.

Ler = Numa primeira fase, não interessa muito o quê, desde que o som da voz esteja presente. “As mensagens incluídas nos materiais de leitura só começam a ser compreendidas mais tarde”. Por isso, mesmo que esteja a ler a bula de um medicamento ou a lista das compras, “o bebé vai prestar atenção e ganhar ferramentas de linguagem”.

Brincar = É ótimo que o bebé tenha brinquedos adaptados às diversas fases de desenvolvimento, mas toda a gente sabe que não são necessárias coisas muito sofisticadas para o interessar”, refere Luís Mário Borges. “Quem nunca viu uma criança pequena encantada a rasgar papéis ou a descobrir as caixas plásticas para guardar alimentos?”, acrescenta. Para o especialista, “o melhor brinquedo de todos é a atenção do cuidador. Só essa potencia a aquisição de noções de volumetria, formatos e pesos”.

Fonte:

Sofia Castelão

Pais & Filhos, número 300, janeiro 2016

 

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