"Foi há já alguns anos que estudos científicos revelaram que um recém-nascido era capaz de ver, ouvir e perceber e reconhecer os cheiros e os gostos. Na altura do nascimento, o recém-nascido humano parece frágil e não apresenta o grau de maturidade da maioria dos recém-nascidos de outras espécies animais. Esta vulnerabilidade é uma consequência direta da sua superioridade biológica e psicológica. Foi por isso que, durante muito tempo, se pensou que o bebé praticamente só tinha funções “digestivas”, sem qualquer vida de relação. A pediatria moderna, contudo, foi capaz de (re)descobrir as grandes proezas de que o recém-nascido é capaz."
Assim começava o primeiro artigo que escrevi para a Pais&filhos, há um quarto de século. Curiosamente, estas “verdades”, tão evidentes como esquecidas até então, são agora intuídas pelos pais, mesmo que, de quando em quando algum me pergunte: “Doutor, quando é que ele começa a ver?” ou “Acha que ele me conhece?”.
Durante muito tempo vivemos numa perspetiva biomédica, centrada no funcionamento do organismo como uma máquina (que, de facto, é) mas esquecendo as componentes relacionais, emocionais, sociais e que a sociologia, psicologia e antropologia nos puderam ensinar.
O que é um bebé? Porque chora quando tem fome, desconforto ou medo? Porque agimos assim ou assado? Porque sentimos e nem sempre conseguimos explicar, verbalizar e até entender os sentimentos, especialmente quando somos crianças? Porque rimos? Porque fazemos birras? Porque passamos de uma fase (e porque será que a temos…) em que pensamos que somos enormes e o mundo minúsculo, para outra em que o mundo é que é enorme e nós minúsculos? E porque é que as crianças têm problemas de sono, não querem comer, são tímidas (algumas) ou ousadas (outras)…
Tantas e tantas questões, para lá das doenças, dos sintomas e síndromas. E essa questão, que ainda causa alguma perplexidade nos pais: “O que é que eles sabem?”. Sabem muito. E cada vez sabemos que sabem mais. Sabem, no sentido de virem equipados com várias “funções” e um invejável software, além de um potentíssimo hardware de última geração. Durante muito tempo, a pediatria olhou para a morte e para as doenças das crianças, porque eram esses assuntos que dominavam o quotidiano. As evoluções espantosas nestes domínios e os avanços da ciência, com a cooperação as várias disciplinas – pediatria, sociologia, antropologia, psicologia – permitiram-nos olhar melhor para o bebé e vermos e escutarmos o que ele, realmente, sabe. E sabe muito!
Genes com milhões de anos
Um bebé recém-nascido não tem apenas alguns dias de vida ou esses dias mais nove meses de gestação. Carrega nos seus genes quatro milhões (há quem diga que é até mais) de anos de História da Humanidade. Essa História está nos nossos genes e, ainda por cima, burilada e refinada, ou seja, foram selecionadas, através das múltiplas gerações, as estratégias que mais “renderam”, as mais eficientes, as mais vitoriosas. Eles sabem muito, mas mesmo muito mais do que nós pensamos. A sua fragilidade e vulnerabilidade é física, é psicológica, é emocional. Nascemos com menos de metade do tempo de gestação “que nos era devido”, em comparação com os nossos “colegas” mamíferos.
A gestação humana (não se assustem as grávidas!) deveria durar cerca de 18 a 20 meses. Seria impossível nascerem bebés tão “cabeçudos”, porque inteligentes, em mães com uma largura de ancas tão pequena, porque bípedes. A Natureza consegue assim pôr a nossa inteligência ao serviço desta causa e acionar os mecanismos de proteção para que consigamos nascer tão precocemente (e já nem falo dos verdadeiros prematuros). Nascemos imaturos, mas isso não quer dizer que o recém-nascido humano não veja, escute, sinta e, sobretudo, tenha o tato e o olfato extremamente apurados – sentidos esses que, infelizmente, a sociedade atual vai descartando, em prol do “audiovisual”.
É por isso que os bebés, que veem, escutam e têm um paladar sensível, gostam e precisam de sentir o cheio dos pais e o seu toque. Numa sociedade de algum distanciamento físico, o “pele com pele” é uma necessidade do bebé.
Sabem e sentem muito
Ser criança ou ser pediatra, ser pai ou ser mãe, hoje ou há 25 anos, não é a mesma coisa. Tanta coisa mudou, e nem estou a referir-me à tecnologia, dos telemóveis aos computadores, dos iPads, ao Facebook ou aos aparelhos de ventilação dos cuidados intensivos. O que gostava, 25 anos depois, era deixar bem claro que o que escrevi na altura se mantém: eles sabem muito, mas mesmo muito, mais do que pensamos e há que “ver” o bebé de forma holística, integrado nos seus diversos ecossistemas e respeitando os seus ritmos. Quando nasce precisa de um “presépio” – intimo, humilde, recatado, de contemplação e paixão no triângulo pai-mãe-filho. Só depois é que deverão aparecer os “reis magos” (avós, tios) e finalmente, bastante depois, a “apresentação no Templo”. Eles sabem muito, e por isso sentem muito e precisam que saibamos o que sabem e respeitemos as suas necessidades biológicas mas também psicológicas e sociais.
O que se vai passar nos próximos 25 anos? As crianças continuarão a ser descobertas. Manterão os reflexos dos primeiros dias, como os descrevi no primeiro artigo da Pais&filhos. Será atual a frase desse tempo: “Assim que nasce o bebé é capaz de ver” e “tem, desde muito cedo, um sentido do olfato bem desenvolvido”, a par do tato, do paladar e da audição…” e podemos acrescentar “e tem sextos, sétimos e oitavos sentidos… e capazes de ter sentimento e de serem e merecerem ser mamíferos, pessoas e cidadãos por inteiro”.
Cidadãos por inteiro
Na altura, terminei o artigo escrevendo: “Longe vão os dias em que, para os pais e para os profissionais de saúde, os bebés recém-nascidos eram seres incapazes de uma interação com o mundo que os rodeava. O recém-nascido tem as suas capacidades sensoriais bem desenvolvidas e necessita de estimulação para a sua vida de relação. É um ser capaz de comunicar e são enormes as vantagens de entendes e estimular essa comunicação.
Para os pais, por outro lado, é extremamente recompensador e divertido descobrir as capacidades do seu filho. Os pais não devem ter medo de brincar com o seu bebé, falar com ele, estimulá-lo, demostrar abertamente o seu amor. É fácil perceber os melhores momentos para desenvolver esta interação pais/filho: quando o bebé está bem acordado, sem fome, sem a fralda molhada, sem cólicas, sem frio, sem sono. É fácil perceber, também, quando o bebé está a ficar cansado – ele defende-se deixando-se adormecer ou ficando irritado. É também fácil descobrir como o bebé se consola, quando irritado: falando com ele, pondo-lhe a mão na barriga, segurando-lhe as mãos e as pernas e impedindo os movimentos de agitação, que o desorganizam, pegando-lhe ao colo, embalando-o.
Cada bebé tem a sua maneira de ser e o seu leque de respostas aos diversos estímulos do mundo que veio encontrar, após nove meses de vida num ambiente agradavelmente quente, relativamente insonorizado e sem demasiada luz. Não se pode esperar que um irmão seja igual a outro irmão, muito menos que o nosso bebé responda da mesma forma que os filhos dos vizinhos, dos amigos ou dos colegas. A descoberta do bebé é um desafio para cada casal com a certeza, porém, de que o recém-nascido humano sabe fazer muitas mais coisas do que simplesmente comer e dormir. É uma questão de lhe dar as oportunidades para o demonstrar.”
Reescreverei tudo. Mudou tanta coisa, mas tanto já se sabia. Como escreveu Sérgio Godinho, “já fizemos tanto e tão pouco”. Continuemos a aventura e, quem sabe, daqui a 25 anos encontrar-nos-emos novamente aqui, para as Bodas de Ouro!
E assim deixaram de ser “plantas de viveiro”…
Foi a Pediatria Social, com o professor Robert Debré e a ajuda de muitos colegas, como o meu pai, quem “descobriu o bebé” e o ouviu, sabendo o que ele sabe. Foi a interação da psicologia e da pediatria que nos mostrou o que “eles” sabiam. Parece-nos estranho, de facto, que durante tantos séculos os bebés fossem considerados como plantas de viveiro – só depois de colocadas na terra é que cresceriam. Ou seja, para lá das suas funções de “come e dorme” pouco mais saberiam. Era a educação e a vida social que lhe davam inteligência, clarividência, manipulação, arte, sedução, expressão de sentimentos e, até… sentimentos! Custa a acreditar, e quando vemos o avanço das neurociências e as descobertas de mais e mais funções humanas, porventura o que sabemos agora ainda é diminuto.
Fonte:
Mário Cordeiro, pediatra
Pais & Filhos, número 301, fevereiro 2016