Os primeiros 1000 dias de vida incluem os nove meses de gravidez e os dois primeiros anos de vida do bebé. “Trata-se de uma fase crítica de plasticidade, em que o organismo tem a capacidade de se adaptar de acordo com o ambiente que o rodeia”, esclarece a pediatra Rute Neves. E destaca: “A epigenética, área científica relativamente recente, permitiu-nos perceber como é que, apesar de herdarmos o código genético dos nossos pais, a forma como os nossos genes se expressam depende do ambiente em que vivemos nos primeiros anos. Assim, os nossos hábitos de vida nestes primeiros 1000 dias deixam marcas irreversíveis no ‘software’ do nosso organismo”.
Uma correta nutrição e a criação de um vínculo emocional forte parecem ser, assim, o melhor seguro de saúde física e mental, nas mãos de todos os pais. Aqui ficam alguns cuidados essenciais a seguir.
Uma correta nutrição neste período contribui para um estado de saúde na vida adulta, já que influencia, não só, o desenvolvimento psicomotor, como constitui um fator de proteção para doenças como a obesidade, síndrome metabólico, doença cardiovascular e doença alérgica, entre outras. É ainda fundamental para a criação de hábitos alimentares saudáveis, já que a experiência com diferentes sabores tem início na vida fetal e os hábitos alimentares se definem essencialmente durante os primeiros dois anos de vida. “Para mim, os princípios básicos são acima de tudo moderação e bom senso”, defende a nutricionista Helena Canário. E ajuda-nos a destacar os princípios básicos a serem seguidos.
Alimentação rica
Durante a gravidez, deve-se ter uma alimentação diversificada e sem excessos ou restrições excessivas. “É muito importante que a mãe tenha uma alimentação rica em nutrientes, procurando manter um equilíbrio entre as calorias que ingere e a energia que despende. Esta é determinante no ganho de peso durante a gestação mas também se irá refletir no desenvolvimento e crescimento, bem como no peso que o bebé terá ao nascer. A grávida deve dar preferência ao consumo de legumes e frutas, tendo sempre atenção à sua proveniência e consumindo-os sempre bem lavados. Deve consumir diariamente fontes de proteínas animais (carne, peixe, ovos, leite e derivados) combinadas com as proteínas vegetais (leguminosas e cereais) sempre bem cozinhados. Açúcares refinados e alimentos processados devem ser evitados. É fundamental fazer suplementação de ferro, ácido fólico, iodo, bem como de outras vitaminas e minerais sempre que se justifique ou quando a alimentação não for suficientemente equilibrada e o profissional de saúde o recomende”.
Até aos quatro/seis meses, a amamentação em exclusivo é preferencial. O leite materno contém os nutrientes essenciais e faz face às necessidades nutricionais do bebé. É o alimento completo e de excelência para esta fase. No caso de a mãe não poder (ou não querer) amamentar deve consultar o seu médico para que este possa recomendar um leite infantil que melhor se adapte ao seu bebé. “No último ano tem-se investido muito em investigação nesta área e já foram desenvolvidas fórmulas muito semelhantes (essencialmente no que diz respeito ao conteúdo de proteínas) ao leite materno, fórmulas essas que diminuem o risco de desenvolver alergias, promovem uma flora intestinal saudável e previnem o rápido ganho de peso devido ao seu baixo teor proteico”, destaca Helena Canário.
A diversificação alimentar deve ser feita de forma gradual e é necessária alguma persistência para que o bebé se adapte à nova forma de alimentação, bem como às novas texturas e sabores. Durante esta fase é importante introduzir os legumes (através da oferta de um puré) que irá treinar o paladar do bebé para um novo sabor, preferir fruta à sobremesa (crua, ralada ou esmagada) e alimentos ricos em ferro, como a carne, o peixe, ou uma papa infantil. É nesta idade que se criam hábitos que vão ajudar a definir as escolhas e padrões alimentares das crianças no futuro, pelo que a dieta deve ser desde logo diversificada, sem excesso de proteína, açúcares ou gorduras saturadas. Helena Canário destaca: “Quanto mais variada for a alimentação do bebé, mais predisposição vai ter para ser um adulto saudável. Estudos comprovam que as crianças que ingerem mais legumes e vegetais em pequenos são aquelas que mais consomem estes alimentos quando mais velhos”. Os pais devem dar, acima de tudo, o exemplo aos mais pequenos, ser pacientes, insistirem, persistirem e não desistirem.
Vinculação
“Estes 1000 dias são um tempo fundador para o desenvolvimento da criança e das características da sua personalidade individual futura. Em particular durante o primeiro ano de vida, estabelecem-se as bases da vida relacional e afetiva que irão determinar o seu percurso”, resume a psicóloga Margarida Fornelos. E reforça: “O desenvolvimento é um processo relacional e social, que se inicia precocemente, ainda antes do nascimento, a partir da relação que se constrói entre a mãe e o bebé, mas que inclui o pai, irmãos e família alargada.
As bases da individualidade constroem-se a partir do sentimento de confiança em si e no seu meio, pela experiência de continuidade dos afetos”. A qualidade e a harmonia afetivas são, assim, o principal fator de saúde mental ao longo da vida, por isso, nestes 1000 dias, abuse dos mimos ao seu bebé.
Até aos três meses a tarefa principal do desenvolvimento é a regulação dos ritmos alimentares e de sono/vigília, pelo que os pais devem estar especialmente atentos para conseguirem interpretar os sinais do bebé e, assim, prestarem os cuidados necessários. “A partir dos três meses, estabelecem-se os padrões individuais de vinculação. O período sensível para a vinculação parece situar-se entre os três e os 12 meses, com um máximo entre os quatro e os seis meses”. Uma vinculação segura é fundamental para o desenvolvimento da confiança e autoestima. “É com base nessa relação primária e na sua qualidade, que as crianças poderão estabelecer outras relações com outras pessoas significativas no seu meio familiar e social”. A experiência de vinculação segura na infância promove a autoestima, a autonomia e um funcionamento social adaptado. Ao longo destes 1000 dias, todos os esforços para criar-se um clima de afeto, intimidade e conhecimento mútuo serão recompensados.
Como conclui a pediatra Rute Neves, “a forma como alimentamos física e emocionalmente os bebés neste período é essencial para que as crianças de hoje se transformem em adultos saudáveis e felizes no futuro”.
Erros nesta fase têm consequências para sempre?
A pediatra Rute Neves responde. “Sem dúvida, pois ficam marcados nos nossos genes. Dou alguns exemplos de erros frequentes que muitas vezes são feitos com as melhores das intenções.
1. Durante a gravidez é habitual que a mulher que já é obesa tente ganhar muito pouco peso. Sabemos hoje que a gravidez não é um momento para restrições. Obviamente que esta mulher deve aumentar menos de peso durante a gravidez que uma mulher magra, mas a restrição nutricional excessiva vai aumentar ainda mais o risco do seu filho sofrer de excesso de peso.
2. Ainda durante a gravidez é muito frequente as mulheres evitarem alguns alimentos por medo que os seus filhos venham a sofrer de alergias. No entanto, não há qualquer evidência que o consumo de alimentos potencialmente alergénicos aumente o risco de alergia nos filhos. Este tipo de restrições podem mesmo resultar em desequilíbrios nutricionais, tanto para a mulher como para o filho.
3. Já após o nascimento é frequente as mães acharem que têm pouco leite. O controlo da necessidade de suplementar o aleitamento materno com uma fórmula infantil deve ser sempre feito com base na pesagem da criança. Uma criança que aumente bem de peso é uma criança que recebe leite materno suficiente.
4. Após a diversificação alimentar, um dos erros mais frequentes é pensar na criança como se fosse um adulto pequeno. Na tentativa de prevenir que a criança seja obesa, alguns pais limitam o aporte de gordura e hidratos de carbono. A questão é que, ao contrário dos adultos, os estudos têm demonstrado que nesta fase da vida é essencialmente o excesso de proteína que está associada ao risco de obesidade a curto e longo prazo”.
Fonte:
Revista Pais&filhos, nº 295, agosto 2015